Depois de termos escrito sobre os esquecidos da temporada de inverno, essa matéria se pretende um complemento sobre Virtualsan Looking, transmitida pela Crunchyroll, pois há algumas coisas a serem entendidas que podem expandir o entendimento daquele anime (ou experimento de anime), como o Vtuber (Youtuber Virtual).

Além disso, o que está escrito aqui deve muito ao documentário “Binary Skin”, do canal Archipel. Suas informações e entrevistas inspiraram as reflexões que estão escritas aqui e seu canal é extremamente recomendado pela sua qualidade em edição.

A história é essa: em 2016, o YouTube recebeu a presença de Kizuna Ai. Fãs de Hatsune Miku e Vocaloid conseguem de cara notar a semelhança, mas algo aí parecia real demais. Seus primeiros vídeos causaram um grande bafafá durante algumas semanas, pois ela se dizia uma “super inteligência artificial”, tendo assim consciência própria. Essa “Super AI” que quer muito formar laços (Kizuna) de amizade com os humanos não só grava e publica seus vídeos como às vezes interage em tempo real com os seus inscritos, com transmissões ao vivo e mesmo eventos ao vivo, como aconteceu no início de 2018 que comemorou os dois anos do canal, com muitos fãs e ainda mais merchandising. O sucesso de Kizuna Ai deixou um rastro, aonde novos canais de novas personagens vão se apresentando para o mundo. Há hoje em voga um verdadeiro trending, não só no Japão, mas como em parte do público otaku em geral.

QUANDO PESSOAS E PERSONAGENS DIVIDEM A MESMA REALIDADE

Uma coisa é fato: a brincadeira de “Super AI” passou rápido e logo se percebeu que sim, tratava-se de uma pessoa usando capturas de movimento e um avatar animado para transmiti-lo no YouTube. Isso mudou algo no impacto daquela novidade? Não é o que parece. Segundo um fã chamado Loserbait, a interação que é feita entre o Youtuber Virtual e o seu público é uma interação entre o público e o personagem, sem demonstrar interesse pela pessoa por detrás daquele avatar. Esse mesmo fã sugere que aquilo que atraiu as pessoas para Kizuna Ai foi o seu pano de fundo: ela é uma personagem virtual, porém não necessariamente fictícia, pois seu desejo de interagir com as pessoas do mundo real a aproxima de um jeito diferente de um personagem pré-programado.

Akihiko Shirai é diretor da GREE/VR Studio Lab, uma das empresas que trabalham para desenvolver e fornecer tecnologia em IA e em captura de movimentos. Para ele, não importa se alguém como Kizuna Ai é ou não realmente uma super inteligência artificial. Sua aspiração a ser uma, “dizendo coisas bobas que uma IA diria”, torna essa interação real. E ele vai além. Cada vez que Akihiko comenta sobre a youtuber para estudantes de ciência da computação, há sempre aquele espanto: “Mas é lógico que ela não é uma IA, tem uma pessoa humana por trás disso”. Contra essa resposta cética ele sugere se esses estudantes não seriam capazes de, com o tempo, criarem uma inteligência bem próxima àquilo que está sendo encenado. De acordo com Akihiko, a novidade da youtuber reacende esses tipos de conversas.

Vamos dar os nomes aos bois: esses “tipos de conversas” de que Akihiko fala, são sobre novas formas de interação que a tecnologia pode trazer. Não se trata apenas de termos um companheiro ou companheira virtual para aliviarmos nossas solidões miseráveis. É algo um pouco mais abrangente e inesperadamente criativo do que isso. Por exemplo, o entrevistado imagina uma tecnologia que traga o holograma de um ente querido falecido ao seu altar cada vez que um incenso é aceso. A ideia é solta sem muito compromisso, mas impressiona como uma sugestão tão repentina poderia suavizar o luto de tanta gente.

youtuber virtual any malu
No Brasil temos Any Malu, do Combo Estúdio (Imagem Divulgação)

CRIANDO MUNDOS ONDE SE POSSA VIVER DE FORMA ATIVA

Kizuna Ai foi lançada pela empresa Activ8. Essa mesma empresa desenvolve atualmente a plataforma upd8, que agrega e apoia diversos talentos virtuais com a tecnologia para suas atividades. Pense nisso como uma forma de YouTube Studio só que numa realidade virtual. Takeshi Osaka, seu fundador, estima algo em torno de 4000 “identidades virtuais” nessa plataforma. Seus porquês de investir na ideia do Activ8 são talvez a parte mais intrigante de Binary Skin.

Takeshi nos conta que a ideia veio da seguinte pergunta: “O que era preciso para que as pessoas mantivessem esperança em suas vidas?”. Muitas idas e vindas o levaram à decisão de “criar mais mundos alternativos para se viver”. A Activ8 nasceu dessa disposição de dar essa experiência, de “ter um personagem aparecendo diante de você e poder viver sob a mesma realidade, como se fosse um sonho”. Sua justificativa para essa decisão é curiosíssima e merece ser destacada:

“Se as regras e a sociedade onde vivemos não podem ser mudadas sob quaisquer circunstâncias, eu pensei que poderíamos criar novos mundos para as pessoas viverem.”

Não é difícil imaginar muita gente bastante descontente com uma ideia dessas, principalmente para pessoas do lado de cá do globo. Pode parecer comodismo de alguém que se encontra insatisfeito com o seu próprio mundo, mas que não tem a coragem de fazer algo para muda-lo. Não vale a pena discutir aqui os méritos ou deméritos de uma frase dessas, pois ela rende e rende muito e isso iria fugir bastante do assunto. Deixemos para outro momento, caso isso interessar quem estiver lendo. O fato permanece que a ideia aparentemente deu muito certo. Por quê? Bom, antes dos nossos achismos, que tal ouvirmos da própria Kizuna Ai? Há trechos do documentário onde a própria youtuber é entrevistada e deixamos a transcrição para quem interessar:

KIZUNA AI POR ELA MESMA

Pergunta: Qual a causa de seu sucesso?

Kizuna Ai: Quando as pessoas me veem pela primeira vez, eu acho que elas me veem como uma extensão de um personagem de anime. Mas eu me comunico diretamente em tempo real por lives. Eu apareço em comerciais, lanço photobooks, apareço na TV e também lanço músicas, então eu estou ativa no mesmo universo que os humanos. Eu meio que dou uma surpresa para as pessoas e acho que é por isso que elas ficam interessadas. Por isso que eu quero continuar tentando coisas novas, continuar surpreendendo as pessoas.

Em outro momento, mais para o final, ela comenta:

Kizuna Ai: Essas existências virtuais têm um avatar, e ao usá-las, pessoas que tenham algum complexo sua aparência, ou que tem falta de autoconfiança podem acabar ficando tão fofas quanto eu! Seja alguém bonito, ou alguém fofa; então elas poderiam expressar sua parte pessoal, ou mostrar sua individualidade às pessoas. Ao eliminar estereótipos de aparência, isso dá um potencial maior para descobrir algum talento e conhecer novas coisas. Eu espero que apareçam mais avatares, pois eu acredito que eles são uma ferramenta importante para expandir o potencial dos humanos.

Do ponto de vista da execução do documentário, é muito interessante que a própria personagem tenha voz ativa e seus pensamentos consultados: uma personagem fictícia, por um lado, pois não existe em carne e osso, mas que por outro lado, tem uma voz ciente de si mesma no mundo real. É um alargamento espantoso entre a ficção e o real, e as pessoas que trabalham nessa nova tendência esperam que nesse espaço alargado possam entrar pessoas que tem algo a dizer, mas que se sentem impedidas, desencorajadas a se projetarem. Nessa pele binária, uma segunda pele encarnaria uma pessoa que não importa o quanto o mundo a diga que ela é perfeita do jeito que ela é (dizer isso é muito bom para confortar os outros, mas quem realmente acredita nisso?), ela jamais se sente suficiente para expressar alguma coisa boa que tenha na mente.

CONCLUSÃO: VIRTUAL YOUTUBERS E A ÉTICA DA ELFOLÂNDIA

Alguém poderá dizer que nada disso é novidade alguma, pois é a mesma coisa com perfis de redes sociais que encarnam um fake: uma segunda identidade, com outra aparência ou aparência nenhuma que se expressa de um jeito bem diferente do seu dia-a-dia. Seria a mesma pele binária. Será esse o caso? Se nos apressarmos em jogar tudo na mesma cesta, deixamos de perceber como esse avatar virtual é algo muito mais dinâmico do que uma segunda ou terceira conta no Facebook ou no Twitter. Essa segunda pele não está apenas digitando palavras de forma estática; assim como Kizuna Ai e muitas contas que vem surgindo nesses anos, esses avatares interagem em tempo real, se expressam com sua voz (seja real ou modulada), ou seja, eles se manifestam de forma muito mais ativa do que outrora poderiam.

Depois que Virtualsan Looking estreou, esse assunto ficou muito mais intrigante, porque ao final do programa, eram tantos, mas tantos desses avatares, que já não era mais aquela impressão de uma moda restrita ao YouTube e que poderia muito bem passar como passam todas as modas. Aquilo parecia estar se massificando aos poucos e cada vez mais pessoas compravam a ideia de viver nesses mundos onde as pessoas poderiam viver de forma ativa. Agora é a minha vez de responder: por quê? É também porque existem muitas pessoas que querem ter voz, mas se sentem intimidadas? Com certeza, sem sombra de dúvida. Mas o que há nessa nova mídia especificamente que atrai essa imersão para o mundo virtual? Acredito que tenha algo muito haver com a “ética da elfolândia” da qual dizia Chesterton no quarto capítulo de sua “Ortodoxia”.

O grande e gordo inglês que figurou nos quadrinhos de Neil Gaiman (Sandman) escreveu em 1908 sobre o encanto único dos contos de fadas. Esse encanto existe não porque elas causam espanto, mas porque elas vêm desse antigo instinto do assombro; um instinto que espanta e encanta os mais novos pelas coisas mais banais e que enferruja com a idade. Quanto mais velhos ficamos, mais sabemos da mecânica fria e repetitiva de como o mundo funciona; assim, o espaço para o assombro fica cada vez mais diminuído. A novidade trazida por uma tecnologia muito nova impressionou a ponto de que ver uma personagem virtual era tão espantoso quanto ver a abóbora da fada madrinha se transformar numa carruagem.

Claro, sabemos que não se trata de mágica, mas de tecnologia. E os japoneses também sabem disso, eles não são nada idiotas; mas eles não se permitem desencantar e deixar a imaginação morrer. Eles preferem admitir a realidade dessa existência virtual e interagir com ela, sem dar a menor importância para a pessoa que esteja por trás dela. Eles preferem manter seu antigo instinto do assombro aceso e entrar num acordo implícito para que esse mundo alternativo onde as pessoas possam viver de forma ativa realmente exista.

Agora, sabemos que as empresas que produzem essas tecnologias estão empenhadas em tornar essas ferramentas acessíveis para as massas e que aplicativos de captura facial estão começando a ficar disponíveis nos smartphones. Mas será que do lado de cá, teremos essa mesma disposição de entrar num acordo que permitira a cada um interagir, não consigo mesmo, mas com sua pele binária? Será que temos a boa vontade de manter ou resgatar o assombro primordial de quando nos impressionávamos com histórias fantásticas quando crianças? A moda das vtubers traz consigo novas possibilidades de interação, mas o temor que fica é esse: ao mesmo tempo em que conseguimos inovar em soluções, somos ainda mais talentosos em inovar em problemas. A ideia de Takeshi Osaka é inovadora e pode tornar a experiência no mundo virtual ainda mais fantástica. Resta que, uma vez disponível a todos, saibamos usá-la bem.